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Os Imponderáveis Destinos das Gêmeas Mutantes Malu e Madu

22/11/2014

2 Comentários

 
Uma tinha o poder de compreender expectativas. 
A outra, o de conectar todos os conhecimentos.
Sinapses
Elas nasceram no início dos anos 70. Talvez seus pais tenham experimentado alguns psicotrópicos durante a concepção, vai saber. O fato é que ambas as gêmeas, idênticas, nasceram com capacidade cerebral muito superior ao padrão humano. As sinapses fluíam, nas gêmeas, com a facilidade que para nós flui apenas o sangue ou o ar na respiração.
 
Assim como todos os irmãos naturalmente se diferenciam na competição subconsciente por amor, cada qual das irmãs aplicou seu poder cognitivo numa direção.

Maria Luiza, pouco a pouco, elaborou conexões mentais que a levaram a sempre compreender, por poucos sinais, as expectativas das pessoas com quem travava contato.

Maria Eduarda, por outro lado, conectava involuntariamente conhecimentos de variadas fontes, de modo que desenvolveu desde muito cedo uma visão clara e holística sobre todas as coisas do mundo.
 
Na prática, a infância das gêmeas não se deu de forma tão diferente das outras meninas. Malu, que desde bebê entendeu as expectativas de seus pais por alguns choros periódicos, algumas esperneadas, além é claro dos constantes despejos de necessidades fisiológicas, assim procedeu. Especialmente quando adultos estavam por perto, despendia sua energia para atender suas expectativas. Em seguida era alimentada, cuidada e recebia o afeto que a fazia se sentir segura.

Madu logo percebeu um padrão dos adultos em lhe oferecer tais coisas, independentemente de suas ações. Não chorava, não esperneava. Fazia as necessidades já durante a troca de fralda. No início seus pais a consideraram adorável, mas depois pensaram que havia algo errado com tanto silêncio. Seria retardada?
 
Nas brincadeiras com as amiguinhas, um pouco mais crescidas, Madu de repente percebia que já havia aproveitado o quanto queria dos benefícios da atividade e partia, mesmo se estivesse no meio do jogo, deixando para trás a irmã. Malu continuava a brincar até que os pais a recolhessem.

A diferença de comportamentos era normal, disse o psicólogo que consultaram. Madu está se desenvolvendo bem, parece que está bastante interessada nos livrinhos para quem tem apenas quatro anos. Talvez ela aprenda um pouco devagar, vocês podem conversar na escola se ela não deve repetir algum ano, isso é normal.

Ah, sim, num teste aplicado pelo psicólogo, para identificar, dentre figuras num papel, uma bola de plástico, Malu apontou diretamente o desenho circular o qual sabia que ele desejava, extraindo um sorriso do adulto. Madu franziu o cenho e apontou o hexágono, só depois o círculo.

“Talvez seja autista”, pensou o psicólogo, “mas ainda é cedo para diagnosticar”.

Madu deixou a consulta certa de seu resultado. A bola era feita de plástico, então naturalmente continha as estruturas hexagonais de benzeno que vira um dia num cartaz do colégio. Adicionalmente, se destituída de seu aspecto tridimensional, poderia ser representada também por um círculo.

Não tardou muito para que Madu, além de repetir os primeiros anos escolares, também passasse a receber aulas de reforço em casa. “Vamos lá, Madu, não é difícil. Na historinha, a raposa invadiu uma plantação de uvas, roubou um cacho, voltou para toca e comeu. A pergunta é: na história, quem comeu uvas?”

Madu não compreendia a dificuldade da explicadora de aceitar que não havia dados restritivos suficientes. Se era uma plantação de uvas, pelo menos uma pessoa as manipulava, e por qual seria a razão senão seu consumo por alguém? Produziriam vinho? Ainda assim, uma ou outra uva devia ser comida no processo. Dessa forma, iniciando da primeira informação do texto – plantação –, Madu se empenhou mais uma vez em tratar dos responsáveis por manusear as uvas como prováveis entes participantes da resposta, para desespero da explicadora, que desistiu.

Malu sentia pela rejeição sofrida pela irmã gêmea e teve uma ideia: uma vez que já cursava duas séries à frente, passou a fazer todas as provas no lugar de Madu, se passando por ela. Foi um sucesso. Seus pais comemoraram os progressos de Madu no colégio e a mimaram com todo tipo de presente. Nessa época Madu ganhou os livros de que mais gostou e que tornaram a literatura sua maior paixão.

O esquema funcionou às maravilhas por anos a fio. Malu tomava com antecedência o calendário de provas de Madu e, em cada dia, usava suas roupas, sua forma desleixada de pentear o cabelo e respondia a prova em seu lugar.

Até que Malu iniciou o ensino médio, na época o colegial, noutro bairro. Nas duas primeiras provas de Madu, a irmã ainda conseguiu se deslocar a tempo. Porém, em seguida, perdeu o horário duas vezes e, para não prejudicar mais a irmã, teve que abandonar o embuste.

“Madu”, disse, fitando-a nos olhos, “simplifica. As pessoas gostam de tudo simples, o mais básico”. Madu não se importava com a escola, mas se importava com a irmã.

Na próxima prova, a de história, foi básica: “Como se deu a libertação dos escravos no Brasil?”, “Uma série de fatores culturais mundiais e locais influenciou decisões dos detentores de poder econômico e político em diversos níveis”. Simples. 0.

Segundo a marcação em caneta vermelha, tinha que ter falado das Leis do Ventre Livre, dos Sexagenários e a Áurea. Partículas de informação sobre tudo o que ocorreu na época; as partículas que interessavam o professor, as quais a irmã tinha tanta facilidade de discriminar.

Um retrocesso, pensaram seus pais ao analisar o boletim ao final do semestre. Apenas na matemática Madu conseguia manter a média. Assim que puderam, matricularam a menina num curso técnico.

Nem é preciso explicar como Malu, a gêmea com poderes de compreender expectativas, passou em todos os vestibulares que escolheu, assim como, mais tarde, recebeu propostas de emprego em todas as entrevistas que realizou. Seguiu bem sucedida carreira em economia, fez fortuna no mercado de ações e fundou uma firma de consultoria em Nova Iorque que teve como um dos clientes o Banco Mundial.

Malu morreu tragicamente no atentado de 11 de setembro ao World Trade Center.

Madu sofreu a perda da irmã, que sempre foi sua melhor amiga, mesmo afastada. Ela havia penado para concluir o curso técnico e conseguir empregos de assistente administrativa em projetos de construção em cidades interioranas. Quando recebeu a herança da irmã, antecipou a aposentadoria e usou parte do dinheiro para dar vazão a sua paixão. Construiu uma biblioteca no vilarejo mineiro onde se estabelecera por último.

Deu à biblioteca o nome da irmã e até hoje pode ser vista por lá, adquirindo novos livros para o acervo, trabalhando em projetos de modernização, lendo para crianças.

​“É meio louca, pobrezinha”, costumam dizer, “mas tem um coração de ouro”.


Para outros contos, clique aqui.

 

2 Comentários
Paulo Vinicius link
22/11/2014 10:58:56 am

Realmente vivemos em um mundo em que precisamos preencher expectativas. Todos os dias, em todos os lugares e a todo o momento.

Queria propor um exercício diferente. Que tal pensarmos de forma inversa? O que acontece com pessoas das quais nada se espera delas? Digo isso porque convivo diariamente com centenas desse tipo de pessoas. A maior parte dos meus alunos de comunidade são oriundos de famílias pobres e que esperam o nascimento de um garoto extraordinário que possa dar à família uma possibilidade de ter uma vida sossegada. Mas, a família não quer ter trabalho, logo, espera que, magicamente, o menino (ou a menina) se torne excepcional sem ajuda.

Mas, estatisticamente, são menos de 5% de pessoas que vivem nessas condições que desenvolvem o auto-didatismo. O normal é que mesmo aqueles que possuem alguma habilidade interessante acaba não a utilizando porque sua família não se importou em dar condições para que pudesse florescer. Todos os anos eu vejo centenas (só em uma das escolas onde leciono são quase 1000 alunos) de flores selvagens que esperam ser podadas. Por mais que tentemos ajudá-las (simplesmente fazendo a nossa parte) falta o apoio da família. Eu sei que é clichê, mas família é a base da formação do homem.

Mas, eu fiquei rambling por várias linhas e não comentei direito sobre o conto. Incrível, não?? Mas o seu conto fez com que eu me lembrasse de algumas situações enfrentadas pelos meus alunos dentro da escola. E ver um pai olhando para você e lhe perguntando como ele deveria criar o próprio filho terrível. E isso é apenas um pai em um universo de quase 1000 famílias em uma escola isolada em um município que nem é tão grande assim.

Responder
Felipe Cotias link
23/11/2014 06:00:34 am

Muito legal o seu aproveitamento do conto para falar de educação e desenvolvimento de uma forma geral. A sua pergunta, como professor, é muito pertinente, pois o professor é apenas uma variável da enorme fórmula que poderia responder essa questão. Como você colocou, a família é outra.

Eu adicionaria mais um grande componente. No nosso sistema fundamentalmente baseado em trocas entre as pessoas, tudo inicia, acredito, no que estamos mais valorizando como sociedade de uma forma geral. A ética da maioria da população me parece fundamentada no pensamento religioso / supersticioso (como você mesmo disse, as famílias estão esperando uma "mágica") e no consumo (vou trabalhar para comprar coisas).

Nesse contexto acho muito difícil promover "a poda das flores selvagens", como você colocou. Fico pensando como poderíamos implantar na sociedade, de forma sustentável, a busca pelo caráter, a busca pelo agir reflexivo sobre o mundo. O sonho de Kant.

Não acho sustentável que isso seja apenas ensinado no colégio; teria que ser um valor difundido culturalmente por toda a sociedade, um objeto de desejo, algo pelo qual a pessoa sentiria vontade de aplicar anos de trabalho para obter. Que substituísse o céu de quem trabalha para Deus ou o carro do ano de quem trabalha para ter. Creio que precisamos de um grande marketing dessa nova ética, que não gera riquezas específicas a grupos destacados, mas uma riqueza geral à civilização.

Divaguei também... Abraços e obrigado pelo comentário!

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